Zaca Camargo - Apresentador |
Surpresa é, quando se fala de
Agatha Christie, um elemento fundamental. Quando você avança para seu terceiro
ou quarto livro – nunca conheci alguém que tenha lido apenas um -, já está
praticamente acostumado com a ideia de que vai ser surpreendido pela
engenhosidade do criminoso revelado nas páginas finais. Motivos, álibis, armas
– isso toda história policial tem. Mas as de Agatha Christie ainda tem algo
mais: esse elemento surpresa que, quando finalmente é apresentado, você tem
vontade de largar o livro e dizer: “não é possível!”.
Foi assim desde o primeiro que eu
li. Me lembro de estar na sexta série quando a professora me pegou lendo o
livro na aula, bem como a lembrança do susto e da bronca que eu levei neste
dia, eu tinha 11 anos. O livro era “O misterioso caso de Styles”
A bronca da professora não é,
porém, a única lembrança. Me lembro também do prazer de desvendar (por tabela)
aquele crime, da impecável atmosfera inglesa que todos os capítulos evocavam
(mesmo quando o protagonista era um certo detetivezinho inegavelmente belga!),
da minha incapacidade de parar de ler – e sobretudo do frisson de pensar que eu
estava lendo um “livro de adulto”… Sim, porque Agatha Christie, entre tantos
méritos, ainda é a responsável por iniciar milhões de crianças e
pré-adolescentes no mundo que, se não é exatamente o da literatura, pelo menos
é um que certamente não se encaixa muito bem na definição de “livro
infanto-juvenil”.
Com raras exceções, todos os
personagens criados pela autora são adultos, circulam no mundo dos adultos,
falam como adultos – e, claro, cometem crimes de adultos. Ao mesmo tempo, o
magnetismo de sua narrativa não é dirigido exclusivamente aos adultos. Basta
gostar de acompanhar uma história bem contada – e pronto! Quando você vê, já
está no capítulo 17…
Livro - Capa |
“Styles”, mesmo com toda essa
carga de lembranças que evoca, não é meu livro favorito da autora. A surpresa
no seu final é boa, mas aos poucos fui conhecendo outras ainda mais geniais que
ela tinha elaborado. Vinha de qualquer aspecto da história: o motivo do crime
(um noivado rompido na adolescência); o álibi do assassino (pensou em “O caso
dos dez negrinhos”?); a banalidade de algumas mortes (“Tragédia em três atos”,
talvez?); as maneiras de despistar a investigação (“Morte na praia” é exemplar
nisso); a escolha do cenário para um homicídio (“Assassinato no campo de
golfe”, “Um corpo na biblioteca” – entre tantos); na simples expectativa de um
crime (“Convite para um homicídio”, lembra?); a maneira de encaixar a narrativa
numa referência já conhecida (“Os doze trabalhos de Hércules” ou “Os cinco
porquinhos”); ou mesmo o conjunto da obra (nem preciso comentar a monumentalidade
de “Assassinato no expresso do oriente”, preciso?).
Já tendo passado por todos os
títulos acima, eu já era um leitor acostumado a esse tratamento – a tramas que
não apenas estimulam seu poder de dedução, mas também respeitam sua inteligência.
Quando então me deparei com esse meu título favorito... Então lá vai: o melhor
livro da autora, na minha opinião, é “O assassinato de Roger Ackroyd”.
Quem já o leu, sabe que agora
estou diante de um problema: não posso comentar nada do livro, senão vai
estragar essa que é das maiores surpresas que a autora já preparou. Não se
trata de um simples “spoiler”, tipo: Hercule Poirot se associa ao doutor Sheepard
para desvendar um mistério. Dizer porque eu gosto tanto de “Roger Ackroyd”
seria não um mero estraga-prazeres, mas um insulto à própria memória de AgathaChristie. É um dos seus primeiros livros – é de 1926, enquanto que seu romance
de estreia, que foi também minha iniciação no mundo “agathachristiniano”, “O
misterioso caso de Styles”, é de 1920. Mesmo assim, acho que nada que ela
escreveu depois – apesar de a lista conter alguns clássicos da autora – é tão
eficiente no quesito surpresa.
Porém, ninguém lê Agatha Christie
simplesmente em função da surpresa. Seu talento em nos cativar vai além disso,
ou você acha que Gilberto Braga empresta de quem quando, ao escrever as cenas
da morte da Taís, em “Paraíso tropical”, coloca um motivo para assassiná-la na
boca de cada personagem principal da novela?
Mesmo em seus romances policiais
mais fracos (e por mais fraco quero dizer aqueles que têm soluções fáceis
demais, ou que não se aprofunda demais nos personagens – porque, oficialmente,
para um fã como eu não existe nada realmente fraco que ela tenha escrito), a
isca é colocada logo de início, e é quase impossível que um leitor abandone a
história depois de tê-la mordido. A fórmula não foi inventada por ela – mas
ninguém a aproximou tanto da perfeição como Agatha Christie. Ao reler um de
seus trabalhos, tive a prova final disso.
Escolhi “É fácil matar” quase que
por acaso. Entrei numa boa livraria, no Rio, e fui ver o que eles tinham da
autora na prateleira. Muito pouco, para a minha decepção – “Roger Ackroyd”, por
exemplo, está em falta. Com a escolha reduzida, fiquei entre dois dos títulos
cuja história eu me lembrava muito pouco: “Por que não perguntaram a Evans?” e
“É fácil matar”. Mesmo lendo a sinopse na contracapa da cada dos dois, tinha a
impressão de nunca tê-los lido – o que era impossível, já que passei por 66
títulos da coleção na minha adolescência (meu pai às vezes se esquecia e me
trazia um repetido, da elegante edição dos anos 70 da Nova Fronteira, que eu
discretamente ia trocar no dia seguinte na livraria Mestre Jou, na rua Augusta…
só uma pequena reminiscência, se me permite). De “Evans”, porém, eu me lembrava
da cena do assassinato (que dá o nome à obra), e assim fiquei com o outro
título.
A frase, tão simples e tão boa, é
de uma certa Miss Fullerton – que morre logo depois de dizê-la a um ex-policial
aposentado durante uma viagem de trem a Londres. Sem o brilho de Poirot nem a
intuição fantástica de Miss Marple, “É fácil matar” é construído sobre um
motivo mais que sórdido para uma série de crimes – que, como sempre, só é
revelado no final. Durante toda a leitura, não havia jeito de eu me lembrar o
que estava por trás daquelas mortes aparentemente acidentais – e, talvez por
isso, foi tão bom ter escolhido este livro para reler e me preparar para este
texto.
Apesar de ser um romance menor da
autora, “É fácil matar” me fez passar por todos aqueles estágios que se
experimenta com um livro de Agatha Christie: apresentação do crime, descrição
dos suspeitos, construção dos possíveis motivos, checada nos álibis, culpado
mais provável… tudo no caminho para que você chegue à conclusão antes de quem
está investigando tudo no livro. Só que a conclusão que você chega é,
invariavelmente errada. No caso desse livro, descobri o que motivava os crimes
com certa antecedência – mas chutei feio quanto ao culpado, e errei. Só não
fiquei decepcionado porque esse é o jogo mais delicioso de se entregar: brincar
de quem é mais esperto com ninguém menos do que aquela que o livro “Guinness”
dos recordes diz que é a autora que mais vendeu livros em todos os tempos.
Entusiasmado com esse recomeço,
peguei, também ao acaso numa prateleira esquecida na minha casa, “Nêmesis”. Também
me lembrava pouco desse ótimo enredo (um conhecido de Miss Marple, propõe,
depois da sua morte, que a “velhinha bisbilhoteira” desfaça uma injustiça do
passado), comecei a relê-lo displicentemente e, pronto! Estou novamente
“viciado” em Agatha Christie… Isso quando a pilha de livros de outros autores
que eu tenho vontade de ler só aumenta…
Autores “da moda”, clássicos
brasileiros, literatura contemporânea, outras histórias tristes que eu gosto
tanto – tudo isso pode esperar, pois agora eu tenho uns crimes para resolver…