sábado, 2 de novembro de 2013

O Medo de Agatha Christie

Em sua autobiografia (que é um dos seus melhores livros, se não o melhor de todos) Agatha Christie discute de vez em quando alguns temas ligados à literatura policial, entre eles o do medo. Embora seja mais famosa por seus romances detetivescos, como os de Hercule Poirot e Miss Marple, ela escreveu também romances e obras de suspense,  dos quais o mais famoso, sem dúvida alguma, é “O Caso dos Dez Negrinhos”.

O que há de mais interessante na saudosa Rainha do Crime é que era uma mulher inteligente, intuitiva, perspicaz, mas sem muita sofisticação conceitual. Vendo-a discutir literatura, história da Inglaterra ou a vida de uma dona-de-casa, estamos diante de alguém que pensa com sutileza e originalidade, mas em momento algum transforma isto em linguajar "pseudofilosofante".

Ela relata que, na infância, uma das coisas que mais lhe causavam medo era a brincadeira da “irmã mais velha”, uma irmã fictícia, que ela imaginava ser louca e moradora de uma gruta, além de ser sósia de sua irmã mais velha, Madge.

A brincadeira consistia em Madge mudar de voz no meio de uma conversa qualquer, e dizer:

_Agatha, você sabe quem eu sou, não é?  Sou Madge. Você não está pensando que eu sou outra pessoa, não é?

A mudança na voz... a mudança no olhar... alguns pequenos gestos... e isto bastava para que Agatha, com cinco anos, tivesse certeza de que não era Madge que estava ali, mas “A Irmã Mais Velha”... Consequentemente a futura e destemida Rainha do Crime, saía correndo, aos gritos.
Depois, comentava ela:

_Por que gostava tanto da sensação do medo? ... Será que habita em nós algo que se rebela contra uma vida com excessiva segurança? ... Será que é necessária à vida humana a sensação de perigo? ... Necessitamos instintivamente de algo a combater, a superar, como se fosse uma prova que quiséssemos dar a nós próprios? ... Se tirássemos o lobo da história de Chapeuzinho Vermelho, alguma criança gostaria dessa história? ...

O medo pode vir dessa capacidade de estranhamento, de distanciamento, de olhar algo que nos é familiar e ver naquilo uma presença ameaçadora. Este processo mental é o reverso de outro que busca nos apaziguar, transformar o estranho ou ameaçador no familiar, no que está sob o controle da consciência.


Agatha relata também a história divertida de um de seus netos, Matthew, que certa vez ela viu, aos dois anos de idade, descendo uma escada sozinho. Com medo de rolar pelos degraus, ele se agarrava à balaustrada, descia um degrau de cada vez, murmurando baixinho:

_Este é Matthew... ele está descendo a escada...

É uma ilustração nota-dez do nosso processo de racionalização, de “olhar de fora” algo arriscado para assumir um mínimo de controle sobre o que ocorre. E ela diz que todas as vezes que precisava participar de eventos públicos, apesar de sua timidez, murmurava para si mesma:

_Esta é Agatha... ela é uma escritora famosa... vai dar uma palestra...

E isto a tranquilizava...


"Um dos nossos maiores medos é o medo daquilo que nossa mente não consegue dominar"

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Inimigo Imaginário de Agatha Christie

Toda criança tem um amigo imaginário; vai ver que todas têm também um inimigo imaginário. Agatha Christie conta em suas memórias que um dos seus pesadelos mais constantes durante a infância envolvia um personagem que ela chamava "O Homem do Fuzil".

Era uma espécie de soldado francês, com chapéu de tricórnio e um mosquetão antiquado ao ombro. Aparecia nos momentos mais inesperados: quando a família estava reunida para o chá, ou quando as crianças brincavam no jardim. De repente, a pequena Agatha começava a sentir uma inquietação crescente. Olhava em volta, e acabava vendo-o sentado à mesa, ou caminhando na direção delas, na praia. Ele se aproximava, com os olhos fixos nela, e eram olhos de um azul muito pálido. Ela acordava gritando; “O Homem do Fuzil! O Homem do Fuzil!” Ela não temia que o homem disparasse o fuzil, que era apenas uma parte de sua indumentária, como o chapéu ou as botas. Era a simples presença dele, e seu olhar cruel, que a amedrontava.

Com o passar dos anos, o pesadelo foi se sofisticando, e o Homem do Fuzil passou a fazer aparições mais sutis. Diz ela: “Algumas vezes estávamos sentados ao redor de uma mesa de chá, eu olhava para um amigo ou para um membro da minha família e, de repente, tinha consciência de que não era Dorothy, ou Phyllis, ou Monty, ou minha mãe, ou qualquer outra pessoa. Nesse rosto familiar, os pálidos olhos azuis encontravam-se com os meus. Era "o Homem do Fuzil.”


 É um pesadelo notável para uma garota de cinco anos, mas é mais notável ainda quando refletimos em quem essa garota se tornou. Agatha Christie está entre os autores que melhor exploraram um tipo de história que os analistas do romance policial chamam de “cozy mystery” (“mistério aconchegante”), ou de “country house murders”. São histórias geralmente ambientadas numa casa de campo (ou mais raramente casa de praia) onde um grupo de pessoas amigas se reúne para passar um feriado ou final de semana, e ali, no meio daquele ambiente tranqüilo, acaba acontecendo um assassinato.


Agatha Christie


O “cozy mystery” é tipicamente a descrição de como a harmonia num círculo de pessoas amigas, ou numa família, é rompida subitamente por um crime brutal. Segue-se uma investigação, no curso da qual o detetive, geralmente Hercule Poirot, começa a desvendar segredos, conflitos, ódios reprimidos, ressentimentos acumulados, e começa a perceber que todo mundo ali poderia ter motivo para matar a vítima. Ele vai reunindo as pistas, confrontando os depoimentos, e o livro culminam com uma sessão em que todos os suspeitos são reunidos numa sala, com a presença da polícia. Ali, Poirot faz uma reconstituição de como o crime foi cometido, elimina de um em um os suspeitos, até que o funil vai-se estreitando, e ele aponta o verdadeiro criminoso. Porque mesmo num ambiente de aparente harmonia um parente nosso, ou um amigo da família, de quem menos se suspeitava, pode ser "O Homem do Fuzil".