Toda criança tem um amigo imaginário; vai ver que todas têm
também um inimigo imaginário. Agatha Christie conta em suas memórias que um dos
seus pesadelos mais constantes durante a infância envolvia um personagem que
ela chamava "O Homem do Fuzil".
Era uma espécie de soldado francês, com chapéu de
tricórnio e um mosquetão antiquado ao ombro. Aparecia nos momentos mais
inesperados: quando a família estava reunida para o chá, ou quando as crianças
brincavam no jardim. De repente, a pequena Agatha começava a sentir uma
inquietação crescente. Olhava em volta, e acabava vendo-o sentado à mesa, ou
caminhando na direção delas, na praia. Ele se aproximava, com os olhos fixos
nela, e eram olhos de um azul muito pálido. Ela acordava gritando; “O Homem do
Fuzil! O Homem do Fuzil!” Ela não temia que o homem disparasse o fuzil, que era
apenas uma parte de sua indumentária, como o chapéu ou as botas. Era a simples
presença dele, e seu olhar cruel, que a amedrontava.
Com o passar dos anos, o pesadelo foi se sofisticando, e o
Homem do Fuzil passou a fazer aparições mais sutis. Diz ela: “Algumas vezes
estávamos sentados ao redor de uma mesa de chá, eu olhava para um amigo ou para
um membro da minha família e, de repente, tinha consciência de que não era
Dorothy, ou Phyllis, ou Monty, ou minha mãe, ou qualquer outra pessoa. Nesse
rosto familiar, os pálidos olhos azuis encontravam-se com os meus. Era "o Homem
do Fuzil.”
Agatha Christie |
O “cozy mystery” é tipicamente a descrição de como a
harmonia num círculo de pessoas amigas, ou numa família, é rompida subitamente
por um crime brutal. Segue-se uma investigação, no curso da qual o detetive, geralmente Hercule Poirot, começa a desvendar segredos, conflitos, ódios
reprimidos, ressentimentos acumulados, e começa a perceber que todo mundo ali
poderia ter motivo para matar a vítima. Ele vai reunindo as pistas,
confrontando os depoimentos, e o livro culminam com uma sessão em que todos os
suspeitos são reunidos numa sala, com a presença da polícia. Ali, Poirot faz
uma reconstituição de como o crime foi cometido, elimina de um em um os
suspeitos, até que o funil vai-se estreitando, e ele aponta o verdadeiro
criminoso. Porque mesmo num ambiente de aparente harmonia um parente nosso, ou
um amigo da família, de quem menos se suspeitava, pode ser "O Homem do Fuzil".
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