Em sua autobiografia
(que é um dos seus melhores livros, se não o melhor de todos) Agatha Christie
discute de vez em quando alguns temas ligados à literatura policial, entre eles
o do medo. Embora seja mais famosa por seus romances detetivescos, como os de
Hercule Poirot e Miss Marple, ela escreveu também romances e obras de suspense,
dos quais o mais famoso, sem dúvida
alguma, é “O Caso dos Dez Negrinhos”.
O que há de mais interessante na saudosa Rainha do Crime é
que era uma mulher inteligente, intuitiva, perspicaz, mas sem muita
sofisticação conceitual. Vendo-a discutir literatura, história da Inglaterra ou
a vida de uma dona-de-casa, estamos diante de alguém que pensa com sutileza e
originalidade, mas em momento algum transforma isto em linguajar "pseudofilosofante".
Ela relata que, na infância, uma das coisas que mais lhe
causavam medo era a brincadeira da “irmã mais velha”, uma irmã fictícia, que
ela imaginava ser louca e moradora de uma gruta, além de ser sósia de sua irmã
mais velha, Madge.
A brincadeira consistia em Madge mudar de voz no meio de uma
conversa qualquer, e dizer:
_Agatha, você sabe quem eu sou, não é? Sou Madge. Você não está pensando que eu sou
outra pessoa, não é?
A mudança na voz... a
mudança no olhar... alguns pequenos gestos... e isto bastava para que Agatha,
com cinco anos, tivesse certeza de que não era Madge que estava ali, mas “A
Irmã Mais Velha”... Consequentemente a futura e destemida Rainha do Crime, saía
correndo, aos gritos.
Depois, comentava ela:
_Por que gostava tanto da sensação do medo? ... Será que
habita em nós algo que se rebela contra uma vida com excessiva segurança? ... Será
que é necessária à vida humana a sensação de perigo? ... Necessitamos
instintivamente de algo a combater, a superar, como se fosse uma prova que
quiséssemos dar a nós próprios? ... Se tirássemos o lobo da história de
Chapeuzinho Vermelho, alguma criança gostaria dessa história? ...
O medo pode vir dessa capacidade de estranhamento, de
distanciamento, de olhar algo que nos é familiar e ver naquilo uma presença
ameaçadora. Este processo mental é o reverso de outro que busca nos apaziguar,
transformar o estranho ou ameaçador no familiar, no que está sob o controle da
consciência.
Agatha relata também a história divertida de um de seus
netos, Matthew, que certa vez ela viu, aos dois anos de idade, descendo uma
escada sozinho. Com medo de rolar pelos degraus, ele se agarrava à balaustrada,
descia um degrau de cada vez, murmurando baixinho:
_Este é Matthew... ele está descendo a escada...
É uma ilustração nota-dez do nosso processo de
racionalização, de “olhar de fora” algo arriscado para assumir um mínimo de
controle sobre o que ocorre. E ela diz que todas as vezes que precisava
participar de eventos públicos, apesar de sua timidez, murmurava para si mesma:
_Esta é Agatha... ela é uma escritora famosa... vai dar uma
palestra...
E isto a tranquilizava...
"Um dos nossos maiores medos é o medo daquilo que nossa mente
não consegue dominar"
Nenhum comentário:
Postar um comentário