Já se gastaram resmas de
papel na tentativa de desvendar o segredo do sucesso de Agatha Christie.
Escritores que investigam o fenômeno começam normalmente com a aritmética de
suas conquistas: só a Bíblia e Shakespeare venderam mais do que ela, traduzida
para mais de cem idiomas, autora da peça que mais tempo ficou em cartaz em
Londres e, além disso, agraciada com prêmios que o sucesso reserva geralmente
apenas aos mais elevados talentos literários - Dame do Império Britânico e um
título honorário de doutora em literatura pela Universidade de Oxford. A
questão permanece: como essa senhora bem-criada, essencialmente eduardiana, conseguiu
isso?
Com toda certeza o apelo
universal de Christie não repousa em sangue ou violência, não nos corpos
crivados de balas nas ruas perigosas de Raymond Chandler, na selva de pedra do
detetive sardônico, rápido no gatilho e gozador, nem na cuidadosa análise
psicológica da depravação humana. Embora seus dois detetives, Poirot e MissMarple, de vez em quando investiguem assassinatos no exterior, seu mundo
natural, conforme percebido pelos leitores, é uma aconchegante e romantizada
cidadezinha inglesa, enraizada em nostalgia, com sua hierarquia bem ordenada: o
cavalheiro rico (muitas vezes com uma jovem esposa de antecedentes
misteriosos), o coronel aposentado irascível, o médico de aldeia e a enfermeira
regional, o farmacêutico (útil para a compra de veneno), as solteironas
fofoqueiras atrás das cortinas de renda, o pároco local, todos se movimentando
previsivelmente em sua hierarquia social como num tabuleiro de xadrez. [...]
Christie não usa grande
sutileza psicológica em suas caracterizações; seus vilões e suspeitos são
desenhados em traços amplos e claros e, talvez por causa disso, têm uma
universalidade que leitores do mundo inteiro podem reconhecer instantaneamente
e com a qual se sentem à vontade. Acima de tudo, ela é uma prestidigitadora
literária que coloca as cartas de baralho com seus personagens viradas com a
face para baixo e as embaralha com experiente destreza. Jogo após jogo temos
certeza de que dessa vez vamos virar a carta com o verdadeiro assassino, e toda
vez sua astúcia nos derrota. E, quando se trata de um mistério de AgathaChristie, nenhum suspeito pode ser eliminado com segurança, nem mesmo o
narrador da história.
Com outros escritores de mistério
da Era Dourada, podemos ter uma razoável confiança de que o assassino não será
um dos enamorados jovens e atraentes, um policial, uma criada ou uma criança,
mas com Agatha Christie não há favoritos nem entre assassinos, nem entre
vítimas. A maioria dos autores de mistério hesita, como eu, em matar os muito
jovens, mas ela é dura, tão disposta a matar uma criança, claro que uma criança
precoce e inimputável, quanto a dar fim num chantagista. Com a Sra. Christie,
assim como na vida, a única certeza é a morte.
Talvez sua maior força
esteja em nunca ter ultrapassado os limites de seu talento. Ela sabia
precisamente o que era capaz de fazer e fazia bem. Durante mais de cinquenta
anos, essa mulher tímida e convencional produziu mistérios de assassinato de
extraordinária destreza imaginativa. Com uma produção imensa, a qualidade é
inevitavelmente irregular [...], mas em sua melhor forma a engenhosidade é
assombrosa. Sua habilidade fundamental como contadora de histórias é o talento
de enganar, e é possível identificar alguns dos truques, com frequência
verbais, com os quais ela nos induz, com delicada esperteza, a enganarmos a nós
mesmos.
Com o tempo, quase
alcançamos a esperteza da autora. Tomamos cuidado ao entrar naquela que é a
mais letal das salas, a biblioteca da casa de campo, suspeitamos do desocupado
insinuante que volta de terras estrangeiras e atentamos cuidadosamente aos
espelhos, aos gêmeos e aos nomes andróginos. Ela gosta sobretudo de uma versão
do eterno triângulo em que um casal, aparentemente feliz no noivado ou no
casamento, é ameaçado por uma terceira pessoa, às vezes predatória e rica.
Quando a vítima é assassinada, há pouco mistério quanto ao suspeito principal.
Só no fim do livro Christie gira o triângulo e reconhecemos que ele estava de
ponta-cabeça o tempo todo. E suas pistas são brilhantemente criadas para
confundir. O mordomo olha de perto um calendário. Ela planta assim em nossa
mente a suspeita de que uma pista crucial está relacionada com datas e
horários, mas a pista, na verdade, é que o mordomo é míope.
Sou apaixonado por Agatha Christie. A leitura de dezenas de seus livros me inspirou ao criar minha trama de ficção. Os crimes, os suspeitos, os motivos, as pistas... tudo isso fascina milhões de leitores desde que ela escreveu o Caso de Styles. Simplesmente minha principal inspiração ao escrever. ;) Não escrevo sobre velhinhas nem detetives com sotaque francês (rsrs), mas o CLIMA de minhas histórias tem muito de Agatha Christie.
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